A Neurobiologia do medo e a política de drogas

É provável que uma das áreas mais prósperas da neurociência atualmente seja a neurobiologia do medo. E uma das políticas menos prósperas de nossos tempos é a proibição arbitrária e intolerante de algumas drogas. E há entre ambas um elo direto, costurado por esta emoção que é crucial para a sobrevivência.

De Darwin e seu livro “A expressão das emoções nos homens e nos animais” no final do século XIX até Joseph LeDoux e o “Cérebro Emocional” no final do século XX, muito se escreveu, estudou e pesquisou sobre o tema. E muito justificadamente. O medo é uma das emoções centrais à sobrevivência de um organismo e, por conseqüência, também de grupos e da própria espécie. O medo é central na reação de “luta ou fuga”, onde um animal deve escolher a resposta certa quando se depara com um perigo, sendo o exemplo mais comum um predador. Um único erro pode ser fatal. Logo, é um sistema cerebral rápido e eficiente, que tem grande influência comportamental. Mas nós humanos há muito vivemos de forma que praticamente nunca passamos por esta situação específica. Não encontramos leões com a boca aberta no farol da esquina. Ainda assim, o medo desempenha papel central em nossas vidas e em nossa cultura. Como nos lembra LeDoux em seu livro, a quantidade de palavras que temos para descrever o conceito é muito ilustrativa de sua importância em nossas vidas: alarme, susto, preocupação, apreensão, temor, ansiedade, desespero, pânico, horror, entre muitas outras opções. Ou seja, nós enfrentamos perigos diferentes, mas não menos numerosos ou significativos, do que animais vivendo em ambientes selvagens.

E um dos maiores medos que temos é da violência: assaltos, roubos, sequestros e, claro, tráfico de drogas. A guerra às drogas chegou a um ponto tão assustador – e ineficiente, já que a disponibilidade de drogas nunca foi tão grande – que a maior parte da violência urbana atual está relacionada a drogas e a sua repressão pela polícia. Assim, escutamos diariamente histórias escabrosas envolvendo traficantes, viciados, policiais e afins. O medo de 50 anos atrás, quando proibiram algumas das drogas, só aumentou, e hoje é difícil escapar destas notícias, agora onipresentes nas TVs finas e modernas que estão até em algumas bancas de jornal e em quase todos os restaurantes, lanchonetes e bares. Só que o sistema eficiente de luta ou fuga, resultado de bilhões de anos de evolução, também tem seus limites. Se por um lado ele te protege do perigo, por outro pode se tornar um problema, principalmente quando super estimulado: reações exageradas no sistema cerebral responsável por várias das sensações da lista de LeDoux – centralizado numa estrutura chamada amígdala e suas interconexões na vasta rede neural do cérebro – são a base de vários distúrbios psicológicos e psiquiátricos, como transtornos de ansiedade, fobias, pânico e estresse pós-traumático.

Se por um lado a história da proibição pode ter começado como uma resposta supostamente adequada a um medo real – substâncias psicoativas que podem causar vício, reações violentas e em alguns casos até mesmo a morte – a outra face da moeda revela que a reação da maioria está desproporcional. Após cinco décadas de repetições quase diárias de informações trágicas sobre drogas e sua proibição, super estimulando nossas amígdalas, não estamos mais com medo das drogas, estamos fóbicos. E fóbico é alguém que tem uma reação muito exagerada a um estímulo que é ameaçador, mas nem tanto quanto parece ao fóbico. Em casos graves, a fobia leva a comportamentos irracionais, e é o que assistimos recentemente na maior universidade do Brasil, por exemplo. Por causa de três estudantes e seus cigarrinhos de Cannabis, a USP virou alvo de ação policial militarizada desproporcional e inadmissível num país democrático. E os estudantes, acuados e assustados, também revelam sua fobia da repressão policial constante. O resultado é lamentável, e já conta com mais de 70 alunos presos, centenas de processos e uma greve geral decretada em assembléia com cerca de 2 mil estudantes. A situação sequer faz sentido do ponto de vista legal, dando ainda mais enfoque à irracionalidade que está em jogo na fobia de nossa sociedade com as drogas: segundo o artigo 28 da lei 11.343/06 o porte de drogas para consumo pessoal não é passível de detenção, pois não oferece danos a terceiros. Ou seja, se nossa atual reação de medo das drogas fosse adequada, se a nossa amígdala coletiva estivesse saudável, três pessoas teriam recebido advertência sobre os efeitos da droga e possivelmente estariam prestando serviços à comunidade e teriam de comparecer a cursos ou programas educativos, enquanto a USP e o resto da sociedade seguiriam seu rumo normal. Mas como acontece nas fobias, pânico e transtornos do estresse, a reação é muito exagerada – nossa amígdala coletiva está inchada, hiperativa, febril – gerando mais danos e piorando ainda mais o quadro. Após esse episódio, as reações que podem se observar nas redes sociais são, na maioria, igualmente de caráter fóbico, incitando intolerâncias várias e comportamentos antiéticos de apoio à violência da PM contra os jovens, ou destes contra a universidade. O objeto do medo coletivo – nesse caso a maconha – certamente não oferece mais perigo que esta briga toda. Após mais de quarenta anos de desinformação, sensacionalismos e as famosas “páginas de sangue” sobre esta guerra que está fora de controle, nossa amígdala social está completamente disfuncional e desorientada. Outro indício desta enfermidade coletiva é que nesta semana, anúncios de um novo livro que visa tratar o assunto de um ângulo sério e diferente daquele dos últimos 50 anos foi recusado pelo metrô de São Paulo, numa atitude difícil de justificar. Se notícias da guerra estampam revistas e jornais diariamente há décadas, porque um livro chamado “O fim da Guerra” (de Denis Russo Burgierman, editora Leya) não pode sequer ser propagandeado pelos meios usuais? Podemos falar a vontade da violência, mas não podemos discutir alternativas para um status quo mais pacífico?

Talvez a ironia final seja que a maconha, de longe a droga ilícita mais consumida no mundo, possui baixa toxicidade, baixo potencial ao vício e efeitos claros e comprovados na diminuição de muitos dos problemas relacionados a ansiedade, estresse e medo, atuando inclusive na amígdala e suas conexões cerebrais. Portanto, a planta da qual estamos fugindo como loucos poderia ser, se usada moderada e adequadamente, parte da solução por um cérebro coletivo mais equilibrado.

Eduardo Schenberg, Doutor em Neurociências pela USP, atualmente pesquisador da UNIFESP.

Apesar da atitude absurda do metrô, o livro será lançado normalmente no dia 28/11 as 19h

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