Resenha crítica: ‘Muito além do nosso eu’ de Miguel Nicolelis

Autor: Eli Vieira
Publicado originalmente no blog Amálgama.

Em Muito além do nosso eu, de Miguel Nicolelis, somos conduzidos a páginas e mais páginas de um relato exaustivo dos motivos pelos quais o autor está no time correto de neurocientistas. Em algo que lembra aquelas discussões de torcedores do Palmeiras contra torcedores do Corinthians, o autor tenta nos convencer de que os distribucionistas, que acreditam que o cérebro trabalha como um todo integrado de processamento paralelo distribuído em populações de neurônios, ganharão inexoravelmente o debate contra os ingênuos e tolos localizacionistas, que, por acreditarem que existem áreas cerebrais especializadas em certas funções mentais, só podem ser herdeiros da pseudociência de Franz Gall (frenologia), que buscava prever habilidades psicológicas a partir de assimetrias cranianas.

Um exército de metáforas desfila, às vezes num ritmo tão caótico quanto o das tempestades cerebrais de que tanto fala Nicolelis, para nos mostrar que o “reducionismo” está fora de moda e o caminho correto das ciências da mente será o de considerar populações de neurônios como a unidade funcional do cérebro, não o neurônio como tentam nos convencer os desatualizados e obscurantistas livros-texto de neurociência. Leões caçam em bandos, um leão solitário nada pode. A campanha das Diretas Já com multidão de centenas de milhares de manifestantes, que Nicolelis testemunhou in loco, de nada adiantaria se fosse um único manifestante bradando palavras de ordem contra a ditadura militar. E é por isso, além é claro também pelos inúmeros dados experimentais apresentados no livro, que devemos adotar o distribucionismo e suas consequências.

Longe de desmerecer os interessantíssimos dados empíricos apresentados por Nicolelis, já nos primeiros capítulos há uma pedra no meio do caminho, e é uma pedra conceitual: o autor faz um balaio de gatos, para não dizer espantalho, entre a visão localizacionista e a visão “reducionista” do cérebro. O leitor é levado a pensar que existe um time de teimosos que quer reduzir pensamentos a um único neurônio, que é a mesma turba que quer nos arrastar de volta para a frenologia. Temos no mínimo duas posições aqui sobre o funcionamento do cérebro, que devem interagir de modo mais complexo que os pares de estruturas cerebrais cujas conexões foram simuladas em algoritmo pelo cientista em seu trabalho na pós-graduação. Não nos é apresentada evidência, no entanto, das razões pelas quais deveríamos culpar os modernos localizacionistas por associação aos extintos frenologistas, e o autor não parece interessado em fazer a mesma justiça que faz à complexidade de conexões entre estruturas cerebrais para a complexidade de opiniões que podem adotar aqueles que discordam dele.

Da mesma forma que o autor culpa seus adversários por associação ao refugo da história da ciência do cérebro, ele alegremente se associa a gênios como Thomas Young e Albert Einstein.

Nicolelis descreve os prodígios da carreira de Thomas Young (1773-1829) como um baluarte de como deve ser a atitude de um cientista, no exemplo da teoria da percepção de cores que Young apresentou no começo do século XIX (antes da descoberta dos neurônios), propondo que haveria três receptores para cores na retina, o que foi confirmado apenas no século XX. Mas uma provocação interessante é que Thomas Young poderia estar correto por acidente, nessas ironias lógicas que permitem a premissas falsas levar a conclusões corretas. Ele pode ter tirado sua ideia de que há três receptores de cor na retina humana do fato trivial conhecido por pintores de que a variedade de tons usados por um Monet pode ser produzida a partir da mistura de tintas com cores fundamentais. Juntando-se isso à teoria ondulatória da luz (parcialmente incorreta, como se mostrou mais tarde), temos a teoria de Young sobre a percepção de cores.

Diz-se que o filósofo Epicuro de Samos, um atomista como seus antecessores Demócrito de Abdera e Leucipo de Mileto (apesar de nunca ter-lhes dado o devido crédito), diferia deles ao propor que além de o universo se reduzir a átomos e movimento, não é um universo puramente determinístico porque os átomos são capazes de dar guinadas imprevisíveis (cf. Foster et al. 2008). Isso lembra mecânica quântica? Sim, mas alegar que Richard Feynman e outros teóricos da quântica são herdeiros diretos de Epicuro seria no mínimo uma incorreção histórica, no máximo uma especulação baseada em correlação espúria de conclusões.

Considerar-se um “discípulo de Young” e acusar os ditos localizacionistas de serem discípulos de Gall comete exatamente essa injustiça, obscurecendo o que deveria ser um tratamento justo da história e da herança cultural que levou às pesquisas modernas, que de modo algum se divide no time dos corretos contra o time dos errados (exemplificados ao longo do livro em anedotas históricas como a de Golgi versus Cajal), mas numa comunidade comprometida com valores epistêmicos de interrogação honesta da realidade e debates fundamentados nesta secreção acumulada de nossas glândulas racionais nos últimos quatro séculos, chamada corriqueiramente de ciência. Para um tratamento menos futebolístico da história da ciência por parte de um cientista, cf. Gribbin (2003).

O termo reducionismo tem se tornado um xingamento no ambiente acadêmico. Um xingamento nebuloso e por vezes injusto. Como lembra Daniel Dennett (cf. Dennett 1998), o problema não é o reducionismo – encontrar as unidades ontológicas nas quais se ancoram determinado fenômeno natural –, mas o reducionismo ganancioso: atribuir todas as facetas e manifestações deste fenômeno a entidades que não têm, individualmente ou em conjunto, propriedades suficientes para explicar e prever o fenômeno em questão. Dennett cita como exemplo o reducionismo ganancioso de Skinner, com suas altas esperanças de explicar toda a mente como resultado de uma simples sucessão de condicionamentos. O que Nicolelis trata como isolamento da unidade funcional da mente – populações de neurônios – é uma clara e distinta baforada de reducionismo, tanto quanto enxergar o rim como um conjunto de néfrons (o que até o momento não só é visto como correto, como leva nefrologistas a salvar vidas todos os dias nos hospitais). A história dirá qual dos dois reducionismos – o celular ou o populacional – é ganancioso para explicar o cérebro, se algum é. E se as esperanças científicas de Nicolelis se concretizarem, vencerá o reducionismo populacional, e nenhum valor negativo deve ser atribuído a esta redução, pois reduzir neste caso significa tornar inteligível.

Mas há no mínimo dois tipos diferentes de reducionismo (cf. Martínez 2011): o ontológico e o teórico. Se alguém diz que a “unidade funcional” do cérebro é o neurônio, está sendo reducionista ontológico, mas não necessariamente reducionista teórico. Um reducionista teórico acreditaria que tudo o que precisamos saber sobre o cérebro pode ser descrito em termos que envolvem o funcionamento de um neurônio (a teoria só precisa falar do neurônio, e dela derivamos o resto). Parece-me que Nicolelis defende bem razões pelas quais o reducionismo teórico ao neurônio é infrutífero, mas isso não obriga um reducionista ontológico a segui-lo. Motivo muito mais forte para abandonar o reducionismo ontológico ao neurônio é a existência de inúmeras células da glia que crescentemente têm sido mostradas como moduladoras e participantes em transmissão de sinais no sistema nervoso central, mas estas células sequer ganham menção no índice remissivo do livro de Nicolelis. Um sinal de reducionismo a neurônios, ainda que em populações?

Difícil julgar. O autor tem declarado que máquinas jamais poderão simular o funcionamento do cérebro humano, pois sua cantilena holista de que o todo do cérebro é maior que a soma das partes dita que as propriedades emergentes do órgão são irreprodutíveis artificialmente. Eu não apostaria todas as minhas fichas nisso, pois, se alguma lição pode ser derivada da história do “reducionismo” na ciência, é que o vitalismo vai mal das pernas desde que a ureia foi sintetizada por Friedrich Woehler em 1828, e este “neo-vitalismo de propriedade emergente” pode ter o mesmo destino. Reduzimos as propriedades da vida, ontologicamente, à física e à química. Mas não precisamos reduzir teoricamente – ninguém até hoje conseguiu reduzir a seleção natural, por exemplo, a explicações que só mencionam ondas e partículas.

É um problema, aliás, que pesquisadores da área biológica ainda considerem as teorias da física o grande quadro de referência ao qual devem prestar tributo todas as novas teorias em áreas como a neurofisiologia. Nicolelis soa exatamente assim quando constrói uma analogia cerebral da relatividade de Einstein para suas conclusões sobre o funcionamento do cérebro, falando em “continuum espaçotemporal” de neurônios e – o que parece uma derrapada – “princípio da incerteza da neurofisiologia”. Os próprios físicos ainda não sabem como unir o princípio da incerteza de Heisenberg com o universo relativístico de Einstein, juntar as duas coisas numa metáfora neurobiológica não parece prestar um grande serviço de esclarecimento.

Voltando à biologia e ao que chamei de “neo-vitalismo” de Nicolelis, Darwin, a propósito, dizia que a diferença de comportamento (e, portanto, de cérebro) entre o ser humano e os outros animais (especialmente vertebrados, cf. Dalgalarrondo 2011) é mais uma diferença de grau do que de tipo de capacidades e propriedades. Se não há muitos motivos para duvidar que conseguimos simular todos os comportamentos de um verme hoje, talvez não devemos ser tão dogmáticos quanto à incapacidade de simular o cérebro humano num futuro remoto, até porque a pesquisa de ponta de Nicolelis tem mostrado que máquinas podem “ler pensamentos” e traduzi-los em comandos computacionais, fazendo com que um primata em seu laboratório controle um robô do outro lado do mundo. Mas o debate entre defensores da inteligência artificial forte e fraca está longe de estar encerrado.

É importante tomar neurônios conjuntamente, mas nem todas as analogias do livro valem. Uma analogia que me interessa particularmente é a da herança multifatorial/poligênica, usada pelo autor como um exemplo de que os genes também são manifestantes das Diretas Já na democracia da manifestação do fenótipo. Não é bem assim. Em fenótipos complexos como a síndrome de Down, por exemplo, já se mostrou que a importância de cada gene é assimetricamente distribuída pela natureza, de forma que há uma “região crítica” do cromossomo 21 na qual há genes sensíveis à dosagem, como o DYRK1A, que são mais importantes que outros no resultado observado. Outro caso é o do famoso gene FOXP2, cujos estudos evolutivos e funcionais mostraram que também na manifestação da base genética da cognição o “voto” de cada gene não tem igual valor. Se a analogia populacional de Nicolelis tem essas nuances em genética, por que não teria na própria neurofisiologia, admitindo, heresia das heresias, algo de localizacionismo?

Se a história da neurociência pode ser reduzida a dois times – os localizacionistas-reducionistas de um lado, e os distribucionistas-holistas de outro –, parece algo que vale a pena disputar no livro de Nicolelis. Ainda mais quando os próprios autointitulados distribucionistas usam modelos teóricos de mapas somatotópicos (homúnculos cerebrais) que ironicamente lembram uma visão em que há regiões especializadas no cérebro (há no livro até uma imagem do mapa somatotópico provável do Pelé, localizando a área de representação da bola de futebol bem junto ao pé do homúnculo cortical).

Já fui a duas palestras de Nicolelis, em ambas não deixei de me impressionar com as possibilidades abertas pelo seu trabalho, e de me entusiasmar com a retórica Santos-Dumontista que está transformando a vida de crianças carentes no IINN-ELS em Natal. Muito além do nosso eu não deixa a desejar ao passar esta atmosfera mental do autor. Desde milhões de anos atrás nossos ancestrais hominídeos foram muito além de seus eus usando ferramentas, e hoje o trabalho de Nicolelis é de fato um ponto de inflexão em nosso entendimento do que significou, em termos funcionais, este passo em direção a um cérebro capaz de simular mais que um mapa de nossos corpos, mas um mapa de uma representação do próprio mundo em nossas habilidades mais valiosas – incluindo o pincel no cérebro de Da Vinci, o avião no cérebro de Santos Dumont e a bola no cérebro do Pelé.

A excelente linha de pesquisa de Nicolelis faz dele um cientista cotado para o Nobel. Seria mais que um orgulho nacional se ele fosse laureado: seria uma restauração da injustiça histórica contra Carlos Chagas, duas vezes nomeado formalmente, duas vezes nomeado informalmente, mas nunca laureado, em grande parte por causa da ação de grupos de detratores entre seus concidadãos cientistas (cf. Coutinho et al. 1999; talvez isso dê alguma pausa aos detratores mais ferinos de Nicolelis no Brasil). O grande mérito deste livro é mostrar como é a vida de um cientista heterodoxo no Brasil e no mundo. E, se minha humilde opinião de leitor e de biólogo pós-graduando em genética vale de alguma coisa, penso que Nicolelis merece seu Nobel de fisiologia/medicina – ainda que não mereça o de literatura.

::: Muito além do nosso eu ::: Miguel Nicolelis ::: Cia. das Letras, 2011, 504 páginas :::
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– LEIA TAMBÉM –
Evolução do cérebro: Sistema nervoso, psicologia e psicopatologia sob a perspectiva evolucionista, de Paulo Dalgalarrondo.

A perigosa ideia de Darwin: A evolução e os significados da vida, de Daniel Dennett.

Critique of Intelligent Design: Materialism versus Creationism from Antiquity to the Present, de John Bellamy Foster, Brett Clark e Richard York.

Science: A history (1543-2001), de John Gribbin.

– Martínez, Sergio F. Reducionismo em biologia: uma tomografia da relação biologia-sociedade. In Abrantes, Paulo C. et al. Filosofia da Biologia. Artmed, 2011.

– Coutinho, Marilia; Freire-Jr., Olival & Dias, João Carlos Pinto. The Noble Enigma: Chagas. Nominations for the Nobel Prize. Mem Inst Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, Vol. 94, Suppl. I: 123-129, 1999.

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