In silico – uma alternativa viável aos experimentos in vivo?

logo1Estamos em um período de intenso debate acerca do uso de animais em pesquisa científica. Grupos de defesa aos animais se proliferam, assim como outras questões éticas envolvendo o uso de células tronco-embrionárias e organismos transgênicos. Deste modo, a discussão sobre as possíveis alternativas ao ensaio com animais vivos, chamado in vivo, se faz necessárias. Há muitos pontos de vista conflitantes, dentro dos diversos segmentos da sociedade, inclusive dentro da própria comunidade científica. Uma das alternativas, que tem ganhado muita atenção e crescido com o desenvolvimento tecnológico e científico, são os métodos in silico, ou a experimentação através da simulação computacional, que modela um fenômeno natural. A simulação nada mais é que a construção de um modelo de uma situação real em que depois serão testadas determinadas situações para avaliar qual seria sua resposta. Ainda assim, essa questão suscita a dúvida: será que este tipo de simulação poderia realmente substituir a experimentação utilizando modelos animais vivos?

Inicialmente, antes do surgimento da ciência ocidental como a conhecemos hoje, o conhecimento era produzido de forma distinta. Os acadêmicos eram apenas teóricos, pois os trabalhos manuais eram considerados inferiores, uma vez que a sociedade era dividida hierarquicamente, é só tinham acesso ao estudo formal os nobres e o clero. Deste modo, se teorizava sobre coisas não testadas e que permaneciam no campo das idéias. A maior parte do desenvolvimento tecnológico que ocorre no período das navegações e renascença se dá principalmente pela ação de pessoas iletradas, os artesãos e marinheiros, que de fato exerciam tarefas e precisavam resolver problemas de ordem prática, e de algum modo acabavam resolvidos, mesmo que pela experiência ou pela tentativa e erro. Quando prática e teoria começam se misturar, com pessoas letradas partindo para a experimentação, a teoria ainda é formulada anteriormente. Apenas após Galileu e Newton, isso se inverte. Começa-se a observar os fenômenos antes de descrevê-los. Ainda hoje essa é a base da estrutura científica, especialmente na área biomédica. A ciência atual se calça sob a experimentação, tanto para se formularem teorias quanto para se comprovar ou refutá-las.

A experimentação animal suscita muitas questões complicadas de ordem ética e prática. Na Idade Média, em que as regras e os valores da sociedade eram muito distintos dos atuais, se utilizavam seres humanos para observação. Havia demonstrações para o público de dissecção de prisioneiros vivos. Ainda no início do século XX foram cometidas muitas barbaridades, com destaque para o nazismo, que utilizou judeus em testes científicos. O primeiro registro do uso de animais para experimentação data dos antigos gregos e há vários outros relatos ao longo da história. A prática, porém, foi sistematizada apenas por volta de 1900, com a criação de diversas linhagens padronizadas, principalmente de roedores, com características bem definidas e algumas sendo específicas para determinado tipo de patologia: animais hipertensos, obesos, diabéticos entre outros, ou com peculiaridades como a resistência à cáries. A regulamentação, os comitês de ética e a pressão da sociedade também são bastante recentes, mas têm se intensificado, o que vem causando uma discussão, reavaliação, remanejamento e minimização do uso de animais de experimentação na classe científica. Além disso, os custos, o excesso de trabalho requerido e as dificuldades de manuseio também dificultam este processo. A primeira alternativa proposta foi a de fazer experimentos, in vitro, com células ou moléculas em ambiente controlado. Hoje esta prática é bastante difundida e amplamente aceita no meio científico.

Os primeiros a utilizarem a simulação computacional foram os físicos, que nos anos cinqüenta do século passado já possuíam computadores e resolveram tentar simular um pêndulo, cujas equações são muito fáceis de serem escritas, mas que são muito difíceis de serem resolvidas e cujo comportamento é muito difícil de prever. Com a evolução da informática, essa tecnologia passou a ser aplicada em várias áreas e a ser usada para vários propósitos. Há simulações para prever os danos de um acidente, seja de trânsito ou o do Atentado de 11 de Setembro. Essas situações são muito complexas para serem plenamente modeladas. Para realizar tais simulações, é necessário se subdividir o universo em pequenos pedaços. Deste modo, ao subdividir pode-se aplicar a cada parte as leis físicas e equações matemáticas que vão reger o seu comportamento. Depois se faz a abordagem computacional e aí sim ao somar-se as partes, teremos uma idéia do todo. O processo é bastante complexo, uma vez que subdividir fenômenos altamente complexos em todos os seus componentes não é trivial, assim como prever o seu comportamento dadas determinadas situações também ou mesmo eleger variáveis param serem usadas e atribuir pesos a elas. Deste modo surge a pergunta: ao quebrarmos uma realidade em diversas partes, ao reconstruí-la conseguiremos realmente obter algo próximo a realidade? Ou existem propriedades emergentes (ou seja, propriedades que somente aparecem quando o todo se reúne e não podem ser previstas apenas pela soma das partes)?

Essa questão é muito difícil de responder. Porque quando se trata de algo realmente complexo, é muito difícil se ter certeza de que tudo foi realmente explorado. Assim, é impossível dizer se há propriedades emergentes ou se faltou algum detalhe na análise. Isso não invalida as respostas obtidas nos modelos. Até porque tudo que temos são interpretações da realidade. Nunca compreenderemos completamente a realidade, uma vez que talvez não exista uma verdade definitiva sobre o mundo. Tudo depende do ponto de vista e dos instrumentos de análise, sejam órgãos sensoriais, o sistema nervoso, equipamentos laboratoriais ou computadores. Antigamente, o mundo natural era estudado em sua completude, no sentido que não havia distinção de disciplinas. Médicos eram também filósofos, escritores e astrônomos. Com o passar do tempo e o acúmulo de conhecimento há a compartimentalização do mesmo. Passa a haver subáreas, com especialistas para elas. Obviamente tal arranjo é completamente artificial e talvez só tenha servido para facilitar o entendimento humano. Na natureza nada é segmentado, as coisas estão interligadas. Dentro da biologia, a física e química abrangem tudo que tange às interações moleculares, por exemplo. Assim, ter uma visão de mundo focada apenas em um âmbito, com certeza produz uma imagem bastante distorcida. O fato de se reunirem campos do conhecimento para se analisar eventos é, com certeza, algo interessante, que os modelos computacionais trazem embutido.

Ao longo da história da ciência, teorias são criadas para explicar fenômenos, e estas são progressivamente melhoradas ou desbancadas por outras que se apresentem melhores. Essa idéia foi explorada pelo filósofo Thomas Kuhn no livro “A estrutura das Revoluções Científicas”, em que ele cunha o termo paradigma, para as teorias científicas. Um paradigma sempre causa discussão na comunidade científica e após negociação, normalmente é aceito consensualmente pelo meio, e se torna o paradigma vigente até que ele não consiga mais esclarecer todos os problemas, ou até o momento em que não for mais útil. Na idade média, um objeto caia no chão quando solto no ar, simplesmente porque acreditava-se que o centro da terra era a origem das coisas, e elas tendiam a retornar para lá, onde era seu lugar natural. Depois, Newton criou o conceito de força gravitacional, que continuamente aplicada sobre os objetos, faz com que caiam. E depois da Teoria da Relatividade de Einstein, a curvatura do espaço passou a explicar a força gravitacional. Deste modo, a ciência avança e evolui, para explicações mais elaboradas sobre o mundo, não necessariamente caminha em direção a verdade. E provavelmente não conseguiremos nunca explicar e entender tudo. Sempre haverá trabalho a ser feito. E isto que torna a ciência algo tão empolgante. Como nos versos de Drummond: “Se procurar bem você acaba encontrando. Não a explicação (duvidosa) da vida. Mas a poesia (inexplicável) da vida.”

Do mesmo modo, as simulações começam com situações bem simples. À medida que progridem e melhoram seu poder de predição, adicionam fatores ao sistema. O fato de não serem 100% fiéis as situações reais não invalida sua utilidade. Na área de biomédicas, há muitas aplicações para a modelagem computacional e sem dúvida ela tem feito enormes progressos para determinados campos, que dependem essencialmente dessa ferramenta, dada a dificuldade de estudo, como a genômica, a bioquímica de proteínas e outras biomoléculas, para predição de estruturas tridimensionais e de interações moleculares, e a neurociência. Esta última tem sido alvo de intensos esforços e progressos. Há simulações desde um simples neurônio, cuja modelagem seria mais simples, até para redes neurais ou até mesmo do sistema nervoso, situações muito mais complexas. Alguns dos melhores computadores do mundo tentam simular redes neurais, pois o comportamento em grupo é muito mais difícil de predizer. Ainda estão muito longe de algo factual, é bem verdade. Mas, como já dito anteriormente, a tendência é que ao longo do tempo essa ferramenta se aprimore.

Entretanto, não podemos esquecer que nada substitui a complexidade de um organismo vivo. Mesmo quando a abordagem é in vivo, sempre estamos correndo o risco de enviesar o experimento. Seja pelas nossas pré-concepções errôneas ou não, mas muitas vezes insuficientes ou mesmo por pura ignorância. Coisas aparentemente banais podem influenciar resultados. Por exemplo, o horário em que é feito o procedimento. O ciclo circadiano influencia a fisiologia de todos os animais. Um experimento feito em determinada condição muda inteiramente quando realizado em condição distinta, o ambiente é capaz de determinar isso. Isso é muito claro na natureza, uma vez que o fenótipo muda de acordo com o ambiente, processo que só entendemos superficialmente. Na verdade temos uma compreensão muito limitada dos processos biológicos. Mesmo assim, não há nada que os substitua. Não há como fazer processos in silico, sem se basear no conhecimento obtido da forma clássica, que é a fenomenologia embutida na modelagem, com certeza a parte mais difícil de determinar. É muito importante que tenhamos sempre a noção de que apesar de útil a abordagem in vitro também é um simulacro da realidade, um recorte dela, e deve ser sempre inferencial ao in vivo. Mesmo com todo o fuzuê gerado pelos grupos de defesa aos animais, estamos muito longe de nos livrarmos da experimentação animal. Pois, a progressão da ciência é dependente dela e mesmo todas as suas alternativas para serem validadas devem se voltar para ela. Reconhecidamente o método in silico possui qualidades e deve ser continuado a ser desenvolvido, assim como métodos in vitro. Mas, definitivamente, uma abordagem não substituirá a outra, uma vez que elas são interdependentes.

Este texto foi construído com base no debate “in silico x in vitro” realizado no dia 28-04-2009 na disciplina “Debates atuais em Ciências Biomédicas” da pós-graduação do Departamento de Fisiologia e Biofísica do Instituto de Ciências Biomédicas. Os debatedores foram o Prof. Dr. Nestor Felipe Caticha Alfonso (Professor Titular do Departamento de Física Geral do Instituto de Física/USP) e o Prof. Dr. José Cipolla Neto (Professor Titular do Departamento de Fisiologia e Biofísica do ICB/USP).

Bibliografia e sites consultados:

ANDERSEN, M. L. et al. Princípios éticos e práticos do uso de animais de experimentação. 1. ed. São Paulo:Unifesp, 2004. 167 p.

KUNH, T. S. A estrutura das revoluções científicas. 3ª edição. São Paulo: Perspeciva, 2000.

ZILSEL, E. The sociological roots of science. American Journal of Sociology, v. 47, p. 540-560, 1941.

*Maíra Valle é aluna de mestrado em fisiologia no ICB da USP e está se especializando em jornalismo científico pelo LABJOR/Unicamp
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