O vídeo abaixo apresenta uma ilusão, de circulação bastante extensa na blogosfera neurocientífica, de uma bailarina rodopiante; como se tornou consideravelmente comum na mídia em geral, as interpretações sobre essa ilusão refletem um mito acerca de uma dicotomia estrita entre hemisférios cerebrais: “Você vê a dançarina girando no sentido horário ou anti-horário? Se horário, você utiliza mais o lado direito do seu cérebro, e vice-versa”.
A assimetria cerebral é um ponto de discussão intensa na neurociência moderna, e ganhou um status estranho nas explicações populares (“folk neuroscience“) sobre a fisiologia do cérebro e o sobre o comportamento. Um cérebro pode ser considerado assimétrico (ou lateralizado) quando um de seus lados (seja um hemisfério cerebral ou alguma região subcortical) é estruturalmente diferente do outro e/ou tem um conjunto diferente de funções. Em humanos, a linguagem e a produção da fala são funções controladas, em larga medida, pelo hemisfério cerebral esquerdo de indivíduos destros, enquanto o hemisfério direito medeia funções emocionais e de orientação espacial. Dados obtidos a partir de experimentos com eletroencefalografia, imageamento funcional, estudos comportamentais, e estudos com pacientes lesionados (p. ex., os experimentos de Gazzaniga e Sperry) parecem indicar que existe uma considerável especialização hemisférica de funções em seres humanos; na visão popular desses resultados, essas diferenças foram muito ampliadas, e esses dados foram usados para criar teorias de “estilos cognitivos” e para explicar diferenças sexuais no comportamento e na cognição. Assim, diferenças individuais no comportamento foram explicadas como diferenças em “estilos cognitivos”, com indivíduos “cerebralmente destros” tendendo a serem mais sintéticos, enquanto indivíduos “cerebralmente canhotos” seriam mais analíticos. Essa visão “popular” não consegue abarcar as sutilezas do conjunto de dados: em humanos, por exemplo, a lateralização só pode ser determinada quando controlamos estatisticamente a lateralidade manual (ou seja, se o sujeito é destro, canhoto, ou ambidestro) e o gênero dos indivíduos. Além disso, a observação de que algumas funções parecem ser lateralizadas não implica que todas as funções sejam lateralizadas; a folk psychology assume que funções mais holísticas são diferencialmente controladas pelos hemisférios cerebrais, enquanto os dados concernentes à assimetria cerebral até agora apontam para diferenças sutis em funções pontuais.
A assimetria cerebral foi, certa feita, vista como um caractere “único”, “a característica definidora do cérebro humano“. Como na maior parte dos casos de nossos caracteres “únicos”, logo se descobriu que a lateralização cerebral é um caractere presente na maioria dos mamíferos e aves. As primeiras teorias da lateralização cerebral, capitalizando sobre a presença desse caractere em primatas antropóides, o associaram à linguagem, uso de ferramentas, e lateralidade manual, mas a assimetria cerebral parece estar presente em espécies nas quais esses caracteres comportamentais estão ausentes ou não são proeminentes. Assim, outros autores sugeriram que a lateralização evoluiu de forma a prevenir o conflito nas respostas eliciadas pela entrada visual de dois olhos lateralmente posicionados:
Essa característica parece ser particularmente evidente em aves, que não apresentem um corpo caloso extenso como o encontrado nos cérebros de mamíferos. Essa estrutura conecta os hemisférios esquerdo e direito do cérebro; no cérebro das aves, o principal sistema de comissuras que liga os dois lados do cérebro encontra-se em estruturas do mesencéfalo – ou seja, as comissuras tectal e posterior -, e pensa-se que esse sistema suprime a lateralização. Em aves, os olhos são posicionados lateralmente, o que cria um grau comparativamente pequeno de visão binocular no campo frontal. Cada olho é capaz de examinar diferentes porções do ambiente visual; a informação de cada um dos dois campos visuais é, então, processada separadamente.
Em contraste, os mamíferos tem um corpo caloso bem desenvolvido, e a informação perceptual pode ser direcionada facilmente para ambos os hemisférios. Alguns mamíferos também apresentam tanto projeções ipsilaterais (= mesmo lado) quando projeções contralaterais (= lado oposto) de cada olho para o cérebro, enquanto, em aves, existe uma decussação completa no quiasma óptico. Mesmo em mamíferos com olhos posicionados frontalmente (carnívoros e alguns primatas), existem diferenças nas entradas de um olho para cada um dos hemisférios (o que permitiu a pesquisa comportamental sobre lateralização). Com maior calibre, as fibras que cruzam para o hemisfério contralateral nesses mamíferos levam sinais mais rapidamente do que as fibras que projetam-se para o hemisfério ipsilateral, sendo, portanto, dominantes durante a estimulação binocular.
Parece, portanto, que mesmo em mamíferos – com seus corpos calosos grandes e, em alguns casos, olhos posicionados frontalmente -, as pressões seletivas que levaram à assimetria cerebral são similares àquelas postuladas para aves; ou seja, a lateralização cerebral parece ter surgido para evitar a eliciação de respostas conflitantes a estímulos que vêm de diferentes regiões do campo visual. Parece pouco provável, dadas a relações filogenéticas entre aves e mamíferos, que a lateralização evoluiu independentemente em ambos os grupos. No entanto, uma visão verdadeiramente comparativa da lateralização é necessária para entender se a assimetria cerebral é homóloga ou homoplásica em aves e mamíferos. Não podemos nos esquecer que a análise de “grupo externo” é muito útil para julgar a homologia histórica de qualquer caractere; se podemos estimar se a lateralização do cérebro estava presente no ancestral reptiliano compartilhado por aves e mamíferos, então podemos dizer que esse caractere é historicamente homólogo nessas espécies. Além disso, dados obtidos em outras irradiações de vertebrados – peixes, répteis e anfíbios – podem nos ajudar a determinar a história evolutiva das assimetrias cerebrais – o que, por sua vez, pode nos ajudar a emitir juízos sobre a conservação filogenética do caractere e o seu valor adaptativo.
Assimetrias comportamentais e estruturais em peixes, anfíbios e répteis
Angelo Bisazza e colegas revisaram assimetriase estruturais e comportamentais em peixes, anfíbios, e répteis, e concluíram que existe variação nos níveis individual e populacional em diversas instanciações da lateralização em todos esses grupos, o que é consistente com os dados apresentados para aves e mamíferos. Por exemplo, os núcleos da habênula, localizados bilateralmente no diencéfalo (sob a epífise), são assimétricos em tamanho em ciclóstomos (lampréias e peixes-bruxa), tubarões, alguns peixes teleósteos, e anfíbios. Nas rãs Rana esculenta e Rana temporaria, a habênula esquerda é composta por dois núcleos distintos, enquanto a habênula direita apresenta só um. Na Rana esculenta, existe assimetria nas atividades eletrofisiológicas espontânea e evocada dessa estrutura; a densidade e a amplitude das ondas obtidas a partir da habênula esquerda são menores do que a densidade e a amplitude das ondas obtidas a partir da habênula direita. Essa assimetria parece ter surgido bastante cedo na evolução dos vertebrados; a lampréia Petromyzon sp. apresenta uma assimetria nos tratos que saem da habênula (com a presença de um trato habênulo-peduncular no lado direito, e ausência no lado esquerdo), e o ciclóstomo Myxine glutinosa tem uma habênula direita maior do que a esquerda.
A maior parte dos dados revistos por Bisazza e seus colegas é comportamental. Em peixes, por exemplo, existe uma lateralização em nível populacional no comportamento de fuga do Girardinus falcatus, do Coregonus nasus e do Coregonus clupeaformis; no nado rotacional, escolhas em labirinto em T, comportamento de côrte e cópula, e comportamento de fuga no Gambusia holbrooki; estridulação e produção de sons no Ictalurus punctatus; e uso do olho no Danio rerio. Em anfíbios, a preferência pelo uso de uma pata foi observada no Bufo bufo, Bufo marinus e Bufo viridis, enquanto a rã Rana pipiens é lateralizada em termos do controle neural de suas vocalizações, a rã Hyla regilla é lateralizada em suas respostas de fuga, e a salamandra Triturus vulgaris apresenta comportamento sexual lateralizado; todas essas assimetrias são observadas no nível populacional. Existe uma diferença considerável entre populações em termos da lateralização das respostas agressivas em camaleõs do gênero Anolis. Evidências de assimetria também são encontradas no registro fóssil. Trilobitas do Cambriano têm uma maior incidência de cicatrizes nas regiões posteriores direitas de seus corpos, o que poderia tanto indicar um viés em virar para a esquerda quando fugindo de predadores quanto uma assimetria na direção do ataque feito por esses predadores.
Parece, portanto, que assimetrias funcionais e estruturais existem, no nível populacional, e todos as irradiações de vertebrados – de fato, é possível que também estivesse presente em invertebrados do Cambriano. Os dados, até agora, não são suficientes para resolver a questão de se isso representa um caso de evolução convergente, caso em que a lateralidade apareceria em diversas espécies de forma independente, ou um caso de conservação de caractere. No entanto, a quantidade de espécies que apresentam assimetrias comportamentais e cerebrais, e a ampla distribuição desse caractere, parece ser um indicativo de homologia.
O valor adaptativo da lateralização
Em todos os casos estudados até agora, assimetrias estruturais e funcionais são bastante espalhadas entre as populações, mas os caracteres não alcançaram fixação na espécie – isto é, algumas populações, mas não todas, dentro de uma dada espécie apresentam funções lateralizadas. A lateralização também foi observada em nível individual em diversos caracteres em diversas espécies – por exemplo, na escolha do uso do olho no peixe-de-briga Betta splendens, ou no comportamento de fuga do Jenynsia lineata. No entanto, assimetrias morfológicas gerais (p. ex., número de raias nas nadadeiras peitorais de peixes) não correlacionam-se com as assimetrias comportamentais em nível individual, o que poderia ser um indicativo do valor adaptativo das assimetrias comportamentais.
Qual, então, é o valor adapatativo da lateralização do comportamento? Em peixes, anfibios, e répteis, diversos caracteres comportamentais parecem apresentar um “viés de direcionamento” no nível populacional – ou seja, pelo menos 50% dos indivíduos de uma população tendem a direcionar-se à mesma direção no comportamento de fuga, por exemplo. Lesley Rogers sugeriu, em um artigo de 1983, que a presença de um viés populacional na lateralização pode ter alguma influência nas interações sociais e na estrutura do grupo: frangos que tenham sido maniplados de forma a remover o input lateralizado in ovo não apresentam assimetrias comportamentais quando adultos, e essa manipulação afeta a coerência e a consistência da estrutura social. Carangueijos do gênero Uca apresenta uma garra grande que é usada em demonstrações de côrte e agonísticas, assim como uma garra menor usada para manipular objetos; existem algumas evidências de que algumas formas de interação agonística são menos freqüentes em lutas em que os oponentes usam garras diferentes do que em lutas em que os oponentes usam a mesma garra nas espécies Uca pugilator e Uca pugnar.
Deve ser lembrado que correlação não implica em causação. Uma terceira variável poderia ser a causa de ambas as variáveis em uma correlação; se os frangos apresentarem uma “síndrome comportamental” que correlaciona alguma lateralização comportamental e a estrutura de grupo no nível populacional, é possível que uma terceira variável – possivelmente a assimetria cerebral – seja a causa dessa correlação. Dessa forma, a correlação por si só é um subproduto da adaptação morfológica.
Será que a interação social é a principal causa da lateralização comportamental desses vertebrados? O que podemos dizer acerca das assimetrias cerebrais – estariam elas correlacionadas com esses caracteres comportamentais? Seriam elas causadas pela interação social? Existem poucas evidências para responder positivamente a essas afirmações. Em pássaros e mamíferos, por exemplo, parece que a lateralização de estruturas cerebrais aconteceu devido a inputs diferenciais de espaços visuais (ou, possivelmente, outros espaços sensoriais); existem poucas evidências de que essas entradas diferenciais correlacionam-se – ou são até mesmo causadas – por demandas sociais. Em peixes, anfíbios e répteis, o posicionamento lateral dos olhos e um corpo caloso reduzido são regras ao invés de exceções; assim, é mais parcimonioso postular que as assimetrias cerebrais e lateralizações comportamentas foram causadas pelas demandas específicas postas pelas diferentes velocidades de condução de eferentes originados em campos sensoriais espacialmente segregados.
Também existem diferenças inter-específicas consideráveis, no entanto, nos caracteres comportamentais que são lateralizados; essas homoplasias também devem ser explicadas. Por exemplo, em algumas espécies, a lateralização social é lateralizada – ou seja, estímulos sociais apresentados monocularmente a um olho tendem a eliciar respostas mais intensa e rapidamente do que estímulos apresentados ao outro olho. Em outras espécies, a apresentação de estímulos nocivos (p. ex., um modelo de predador) a um olho elicia respostas de fuga, enquanto essas respostas tem menor probabilidade de ser eliciadas quando o mesmo estímulo é apresentado para o outro olho. Em humanos, existe lateralização no processamento da valência (positiva vs. negativa) de estímulos emocionais. Claramente, o comportamento social, a avaliação emocional e as respostas antipredatórias representam domínios funcionais diferentes; as pressões seletivas que agem sobre um deles podem não ser as mesmas que agem sobre os outros. É possível, no entanto, que essas assimetrias espécie-específicas constituam exaptações de funções mais primitivas de lateralização cerebral – ou seja, ainda que o valor adaptativo primário da lateralização fosse um aumento na precisão do processamento de estímulos segregados espacialmente, a mesma adaptação foi depois “cooptada” para outras funções.
Na blogosfera:
Dois hemisférios = Dois cérebros?, em BioFilosofia
Asymmetrical brains help fish (and us) to multi-task, em Not Exactly Rocket Science
Asymetric architecture in the left and right hemispheres, em Developing Intelligence
Cellular “tug-of-war” breaks brain symmetry, em Neurophilosophy
Esse post apareceu pela primeira vez, em uma versão ligeiramente diferente, aqui. Principles of Neurobiotaxis é um de meus blogs de neurociência evolutiva; o outro é The Descent of Brain. Todos estão convidados a lê-los.
*Caio Maximino é Professor Auxiliar 1 de Farmacologia da Universidade Federal do Pará, e mestrando em Neurociências e Biologia Celular da mesma universidade.
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