A Neurociência no fio da navalha

Cena do filme “Laranja Mecânica” de Stanley Kubrick, 1971

Cena do filme “Laranja Mecânica” de Stanley Kubrick, 1971

How likely is it that the society of the future will incorporate the science of control into politics of governing? The answer, we think, will depend heavily on choices people make now.

Scheflin and Opton, The mind Manipulators

Em manifestação recente para a edição de 08 de fevereiro deste ano da revista “New Scientist”, o pesquisador Curtis Bell, da “Oregon Health and Science University”, em seu artigo “Neurons for peace: Take the pledge, brain scientists”, assinalou a importância capital da manifestação dos neurocientistas de todo mundo pelo uso responsável das Neurociências no desenvolvimento de tecnologias.

Passadas décadas, as Neurociências não são mais, desde longe, uma ciência puramente básica, que vê suas aplicações apenas nas mentes dos escritores de ficção científica. Hoje o seu aprimoramento torna clara a sua aplicação em tecnologias médicas e computacionais, mas abre igualmente brechas para o seu mau uso no desenvolvimento de armamentos e tecnologias de controle comportamental.

Desenvolvimento de armamentos e controle comportamental? Isso nos faz relembrar as obras de Aldous Huxley, George Orwell ou Zamiátin – mestres da ficção científica que tanto alertaram sobre o uso de tecnologias de controle comportamental em sociedades totalitárias. Entretanto esta afirmação não está tão longe da realidade como se pensa.

Em artigo da Nature “Neuroengineering: Remote control” de junho de 2003, Hanna Hoag cita uma série de pesquisas realizadas nos Estados Unidos, tendo como fim a efetivação de tecnologias de interface cérebro-máquina.

Num desses projetos, denominado “Roborat”, Tanjiv Talwar e colegas, da Universidade de Nova Iorque, implantaram eletrodos no cérebro de cinco ratos, em regiões relacionadas à recompensa e ao movimento das suíças, enviando sinais para essas regiões, conseguindo treinar os ratos para se movimentarem para a esquerda ou direita, bem como para saltarem.

Devido ao fato dessa pesquisa ter utilizado apenas três eletrodos, muito se pensou a respeito do que ocorreria, caso mais eletrodos fossem utilizados, o que levou a criação do “Brain Machine Interface Programme”, nos EUA, em 2002, o qual pretende incentivar pesquisas com o objetivo de desenvolver tecnologias de interface cérebro-máquina e comunicação cérebro-máquina humanas.

O pesquisador brasileiro Miguel Nicolelis foi outro que desenvolveu pesquisas de cunho similar na Universidade de Duke em Durham, North Carolina, com o objetivo de desenvolver uma tecnologia que permitisse o controle de um braço mecânico por um macaco apenas pela ativação do córtex motor do animal. Outras pesquisas são citadas no artigo em questão, como o projeto de Sam Deadwyler da “Wake Forest University” e Ted Berger da “University of Southern Califórnia”, o qual procura construir um modelo matemático do funcionamento do hipocampo, tendo em vista a criação de um microchip que substituiria esta região em caso de dano neurológico.

Existem muitos outros trabalhos relacionados com o tema e todos, sem exceção, têm benefícios médicos potenciais. O problema que se levanta é que todos foram financiados de alguma maneira pelo “US Defense Advanced Research Projects Agency” (DARPA), o qual está ligado ao exército americano, levando à reflexão sobre os reais interesses que existiriam por detrás do financiamento dessas pesquisas, afinal seria inocente pensar que um órgão militar financiaria uma série de projetos apenas com o intuito de avançar o progresso científico na área médica, assim como uma empresa farmacêutica não financia uma pesquisa de fármacos para a produção de remédios que não lhe trariam nenhum benefício.

Toda pesquisa pode levar a infindáveis benefícios para a humanidade, bem como podem levar à sua decadência, se mal empregadas. Segundo a pesquisadora Martha Farah, pesquisadora de Neuroética do “Center for Cognitive Neuroscience” da Universidade da Pensilvânia, Filadélfia, pesquisas que aceitem fundos provenientes de órgãos militares, mas que não acreditem nos objetivos finais desses órgãos, estão comprometidas com a ética.

É fato que projetos tão surreais e caros como esses não seriam tão facilmente financiados por agências de pesquisa comuns e geralmente mais conservadoras, porém há o perigo real dessas tecnologias serem empregadas para a guerra, quando financiadas pelos militares.

Fora isso, a controvérsia dentro das Neurociências não pára por aí. A recente linha de pesquisa denominada “Neuromarketing” gera uma série de questões relacionadas ao uso das pesquisas para fins questionáveis.

Segundo Richard Restak, em seu livro “The naked brain: how the emmerging neurosociety is changing how we live, work and love”, o “Neuromarketing” tem como meta a aplicação social de dados de pesquisas de Neurociências na condução dos indivíduos para a compra de determinados produtos. Assim, uma publicidade deve estar atenta para os padrões encontrados entre a comunicação e as emoções geradas nos indivíduos. De acordo com o autor, espera-se que por meio de uma máquina de ressonância magnética, possa-se ‘ler’ se a pessoa gosta ou não de determinada marca.

O intuito aqui não é discutir as falhas por trás das proposições do ‘Neuromarketing’ ou mesmo fazer uma reflexão aprofundada a respeito do problema ético que a envolve, o que incluiria, inclusive, o próprio Marketing. Entretanto, cabe perguntar se é ético utilizar dados – sejam eles provindos de fMRI (Ressonância Magnética funcional), EEG (eletroencéfalograma), cronometria mental etc – com o intuito de melhor manipular uma mente (seja para vender um refrigerante ou para coibir alguém a parar de fumar), afinal manipular alguém já é por si só controverso.

Além dos exemplos já citados, vale relembrar o uso duvidoso da “Fisiologia do sistema nervoso” do século XIX no diagnóstico de tipos violentos, preguiçosos e usurpadores, através da medição do tamanho do crânio dos indivíduos – ciência esta denominada Frenologia.

Por trás de todos esses exemplos está a idéia de que qualquer ciência não pode ser considerada como neutra; os frutos de suas pesquisas sempre poderão ser utilizados, tanto para o bem, como para o mal. Importante é evitar o caminho errôneo da suposta neutralidade cientifica, abrindo mão das possíveis consequências que a pesquisa trará para a sociedade.

Há muitos outros temas contestáveis que envolvem as Neurociências, como por exemplo, as mensagens subliminares e a lavagem cerebral, mas eu os deixo para os leitores que queiram se aprofundar no assunto. Deixo apenas a mensagem de que, apesar do fato das Neurociências ainda serem uma ciência jovem, elas também podem gerar, tanto benefícios, quanto malefícios, dependendo de como as tecnologias por elas futuramente desenvolvidas sejam pensadas e utilizadas. Importante, assim, é que os pesquisadores e estudantes de Neurociências tomem consciência das consequências potenciais de seus projetos de pesquisa para a sociedade, pois o cientista, apesar do que comumente prega a mídia, não é um ser a parte da sociedade e deve, portanto, ser, antes de pesquisador, cidadão.

Para saber mais:

BELL, C. Neurons for peace: Take the pledge, brain scientists New Scientist, 2746, 08 February 2010. Disponível em: < http://www.newscientist.com/article/mg20527465.900-neurons-for-peace-take-the-pledge-brain-scientists.html >. Acesso em: 25 jun 2010;

HOAG, H. Neuroengineering: Remote control. Nature 423, 796-798 (19 June 2003). Disponível em: < http://www.nature.com/nature/journal/v423/n6942/full/423796a.html >. Acesso em: 25 jun 2010;

RESTAK, R. The naked brain: How the emerging neurosociety is changing how we live, work, and love; Three Rivers Press, NY, 2006;

TAYLOR, K. Brainwashing: The science of brain control. Oxford University Press, Oxford, 2004

Camila Victorino é bióloga, formada pelo Instituto de Biociências da USP, e participa atualmente do programa de Mestrado do Departamento de Fisiologia do Instituto de Ciências Biomédicas da USP, desenvolvendo projeto relacionado com Neurociências.

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