Darwin, evolução e Neurociências

O ano de 2009 foi denominado pela International Union of Biological Sciences como o ‘Ano de Darwin’*, não somente porque se comemoram 200 anos desde o nascimento de Darwin, ocorrido em 12 de fevereiro de 1809, mas também porque se completam 150 anos desde a publicação de A origem das Espécies (do original em inglês, On the Origin of Species by Means of Natural Selection) em novembro.

Antes de Darwin, a maioria das pessoas aceitava idéias de que o mundo natural fora criado. As espécies não eram conectadas numa única “árvore da vida”, pelo contrário, eram completamente separadas, vistas como entidades não relacionadas entre si, como se não houvesse um parentesco entre elas. Os seres vivos eram concebidos como criaturas criadas num passado remoto e teriam permanecido inalterados ao longo dos tempos, sem qualquer mudança, pois o planeta Terra era considerado muito jovem – com cerca de 6000 anos de idade. Portanto, de acordo com a lógica da ocasião, não haveria tempo suficiente para as espécies se alterarem. De acordo com essas noções, o ser humano não seria parte do mundo natural, estaria completamente fora dele e, na verdade, estaria “bem acima disto!”.

Nesse contexto, afirmar, como fez Darwin, que o homem não é o centro da natureza, mas apenas mais uma espécie que compartilha ancestrais com moluscos hermafroditas acéfalos e, mais recentemente, com primatas, talvez tenha causado mais impacto do que a proposta de Copérnico, em 1543, de que a Terra não era o centro do universo, mas sim que ela girava em torno do Sol. Entretanto, ao contrário da revolução copernicana, que não chamou muito a atenção do público enquanto os detalhes científicos não foram amplamente analisados, a revolução darwiniana teve, desde o início, os mais diversos espectadores tomando partido, incluindo leigos, filósofos, religiosos e políticos, além dos cientistas. E, diferentemente da descoberta de Copérnico, a teoria da evolução ainda encontra considerável resistência nos dias de hoje principalmente entre os religiosos, mas raramente entre cientistas. Deste modo, não seria demais afirmar que Darwin teve a mais perspicaz influência na cultura humana que qualquer outro cientista jamais teve, pois sua contribuição levou a uma revolução sobre como o homem vê a si mesmo.

O conceito de evolução das espécies por meio da seleção natural é uma das mais brilhantes e esclarecedoras idéias científicas de todos os tempos. O trabalho de Darwin não só lançou as bases teóricas da biologia moderna, permitindo integrar conhecimentos de praticamente todas as áreas da biologia, como também influenciou outras áreas do conhecimento, como a antropologia, psicologia, política e economia.

É importante lembrar que outros antes de Charles Darwin (até mesmo seu avô, Erasmus Darwin) já especulavam acerca da evolução das espécies. Além de Lamarck, cujas idéias influenciaram profundamente seus estudos, Darwin chegou a reconhecer os trabalhos de William Charles Wells e Patrick Matthew com idéias “pré-evolucionistas”, assim como o trabalho de Alfred Russel Wallace, naturalista britânico que chegou a uma explicação muito similar de como a evolução ocorre, de maneira independente e simultânea a Darwin. E foi com a integração dos trabalhos de Darwin e Wallace que a teoria da evolução foi anunciada pela primeira vez, em uma reunião da The Linnean Society, em 1858, em Londres. Entretanto, foi Darwin quem produziu a abundância de dados empíricos que dava suporte a esta teoria e foi ele também quem a publicou como obra cientifica no ano seguinte a esta reunião.

O livro “A origem das espécies” foi fruto de mais de 20 anos de observações na natureza – muitas das quais realizadas durante sua viagem a bordo do Beagle. Darwin trouxe consigo uma coleção com cerca de 2.000 páginas de anotações e um diário com 770 páginas, além de vários espécimes secos e outros conservados em álcool. Suas anotações são um exemplo de como pensar sobre uma informação nova quando ainda não se sabe que rumo de raciocínio tomar. A leitura de suas notas revela que Darwin, a todo momento, trabalhava com o objetivo de entender como os organismos sobrevivem e se modificam, levando ao surgimento de novas espécies.

Mesmo considerando que Darwin não tinha conhecimento dos mecanismos de hereditariedade – uma lacuna fundamental que preencheria o encadeamento das evidências – e, mesmo não tendo exemplos visíveis da evolução acontecendo na natureza, é curioso o fato de estas informações poderem ter sido acessadas ainda durante sua vida. Embora as “leis da hereditariedade” de Gregor Mendel não fossem descobertas pela comunidade de biólogos até 1900, elas foram publicadas em 1866. E, antes de Darwin morrer, em 1882, um dos mais emblemáticos exemplos de mudança evolutiva estava ocorrendo nos arredores de seu próprio país; a seleção das mariposas no distrito industrial de Londres, descrito posteriormente.

Contudo,além da teoria da evolução através da seleção natural, que ainda hoje causa discussões acaloradas em vários setores da sociedade, um dos maiores legados de Darwin, principalmente no mundo acadêmico, é o seu rigor científico. A minúcia e paciência com que conduziu as suas observações, seus trabalhos e suas conjecturas é algo extremamente invejável, além de fascinante. Além disso, é interessante notar que hoje em dia, pesquisadores equipados com câmeras sofisticadas, computadores, GPS, seqüenciadores de DNA, ferramentas das mais elaboradas – algo que seria completamente estranho a bordo do Beagle – demonstram cada vez mais a vitalidade do trabalho de Darwin.

Darwin e seu Legado para as Neurociências

Em “A origem das espécies” Darwin não aborda o comportamento humano, talvez por prudência, para não incitar polêmicas, mas mesmo assim elas aconteceram. Entretanto, esta “lacuna” foi compensada com a publicação de dois livros que se seguiram: “A descendência do Homem” (original em inglês: The descent of man, 1871), em que faz uma extensa e um tanto antropomórfica comparação entre as capacidades mentais do homem e dos “animais inferiores”. Este livro é um pleno argumento das similaridades e continuidade entre os símios e os humanos, e ainda enfatiza a importância do cérebro: “É notório que o homem foi construído da mesma forma ou modelo que os outros animais. Todos os ossos de seu esqueleto podem ser comparados com certa correspondência com os ossos de um macaco, morcego ou foca. E isto vale para os músculos, nervos, vasos e vísceras. O cérebro, o mais importante de todos os órgãos, segue a mesma lei” (1871/1981, p. 127). Ainda neste livro ele declara que um dos seus objetivos é “mostrar que não existe nenhuma diferença fundamental entre o homem e os mamíferos superiores quanto às faculdades mentais” (1871/1981, p. 84). O outro livro publicado por Darwin que aborda o comportamento humano é “A expressão das emoções no Homem e nos Animais” (original em inglês, The expression of the Emotions in Man and Animals, 1872). Embora situasse o ser humano próximo dos demais seres vivos, rompendo com a crença anterior de que o ser humano seria uma entidade única e completamente distinta, Darwin atribuiu papel de destaque ao homem em relação aos outros animais ao inserir no título do livro, “A expressão das emoções no Homem e nos animais”, o “homem” primeiro e em posição de destaque e, a seguir, os animais.

Ao fazer suas comparações, Darwin não pretende igualar a mente humana à dos animais, nem mesmo à dos primatas próximos. A mensagem principal é que o comportamento humano pode ser estudado numa perspectiva comparativa, em confronto com o dos outros animais, ressaltando que existe continuidade suficiente para que comparações possam ser feitas e princípios gerais, evolucionistas, podem ser encontrados independentemente das variações produzidas pela aprendizagem, memória e cultura.

Ainda sobre o estudo das emoções, Darwin defende que o comportamento sofre variações e seleção dependente do ambiente. Ele demonstra que raiva, medo e alegria, por exemplo, são emoções compartilhadas por vários animais, não somente o homem; “até as abelhas podem ficar com raiva”, defende. Darwin considera ainda que algumas de nossas expressões são resquícios herdados de antepassados primitivos, comuns tanto ao homem quanto a outros animais. E mais, muitas de nossas expressões são inatas e não aprendidas, já que se repetem em homens e mulheres das mais variadas culturas.

Interessantemente, quando Darwin discute os “Princípios gerais da expressão” (cap. 1), principalmente o “princípio das ações devidas à constituição do sistema nervoso e o hábito”, ele antecipa um dos mecanismos fundamentais em neurociências através do qual aprendizado e a memória são explicados hoje: “Não se sabe ao certo como pode o hábito ser tão eficiente na facilitação de movimentos complexos”, e mais, “a força condutora das fibras nervosas aumenta com a freqüência da sua excitação. Isso se aplica tanto nos nervos motores e sensitivos quanto àqueles envolvidos com o ato de pensar. Dificilmente podemos duvidar que alguma mudança física se produza nas células nervosas e nos nervos que são habitualmente utilizados…” (1872/2000, p. 37). O que Darwin antecipou foi a sinapse hebbiana, mecanismo descrito apenas em 1949, por Donald Hebb.

Entretanto, é no trecho final de “A origem das espécies” que Darwin mostra que estava ciente das possíveis implicações de suas idéias, sobretudo daquelas para além da biologia. Ele escreveu:

Em um futuro distante, eu vejo campos abertos para pesquisas muito mais importantes. A Psicologia encontrará uma base segura no fundamento da aquisição necessária de cada poder mental e de cada capacidade mental de forma gradativa. Muita luz será lançada sobre a origem do homem e sua história” (Darwin, 1859/1996, p. 394).

Atualmente, umas poucas vozes defendem que “a seleção natural é aceitável para aspectos anatômicos do ser humano, mas não para o cérebro e para o comportamento”, como se fosse possível dissociar “evolução anatômica” de “evolução cerebral” e esta última de “evolução comportamental”. Porém, sua argumentação é frágil, pois ao abrir uma exceção para uma espécie particular (a humana) por razões não científicas seria negar o princípio de Darwin para todos os outros seres vivos. Por outro lado, a Psicologia Evolucionista vem demonstrando que os avanços nas ciências, sobretudo nas neurociências, permite construir modelos com grande poder explanatório para os fenômenos psíquicos, relacionando-os à genética e à evolução. Assim, negar a teoria da evolução nos seus aspectos mais gerais e essenciais ou mesmo em relação ao comportamento e funcionamento do cérebro humano, corresponderia a insistir que Copérnico estava errado quando propôs que a Terra se move ao redor do sol, e que na realidade a Terra é o centro do universo, não obstante a massiva quantidade de evidências contrárias a essa interpretação.

Por mais polêmica que a teoria de Darwin gere, ela é hoje o pilar central das ciências biológicas, tão indispensável para explicar a resistência de bactérias a antibióticos quanto desenvolvimento de uma formiga, a resposta de uma floresta aos efeitos do aquecimento global ou o funcionamento do cérebro.

* Embora não tenha sido possível declarar oficialmente 2009 como “Ano Internacional da Biologia” (World Year of Biology, já que a UNESCO já havia oficializado este ano como World Year of Astronomy, várias entidades se organizaram para comemorar “2009, Ano de Darwin”.

Para saber mais:

Darwin, C. The descent of man and selection in relation to sex. Princeton: Princeton University Press, 1871/1981.

_____. A expressão das emoções no homem e nos animais. São Paulo: Companhia das Letras, 1872/2000.

Desmond, A. e Moore, J. Darwin: a vida de um evolucionista atormentado. São Paulo: Geração Editorial, 2007.

Renata Pereira Lima é bióloga e atualmente desenvolve seu projeto de mestrado no Laboratório de Neurociência e Comportamento no Departamento de Fisiologia – IB, USP.
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