Estudando o cérebro criminal

Pouco tempo atrás, foi noticiado pela mídia que um grupo de cientistas gaúchos pretendia estudar, mediante modernas técnicas de imagem entre outras, o cérebro de jovens infratores, tentando descobrir a possível existência de alterações neurológicas ou genéticas associadas ao comportamento agressivo. Dias depois, um grupo de mais de cem pessoas, formado fundamentalmente por psicólogos, mas incluindo advogados, antropólogos e educadores, lançaram dura nota*, tentando impedir a realização de projeto. O grupo pegou pesadíssimo, comparando o projeto com “… velhas práticas de exclusão e de extermínio.”, e ainda afirmando coisas como “… (o estudo) nos remete às mais arcaicas e retrógradas práticas eugenistas do início do século XX.”.

A partir daí, a polêmica foi desatada, com a notícia sendo divulgada inclusive no Fantástico, em rede nacional. O preocupante neste episódio, não é a polêmica e o debate suscitados. É sempre salutar que quando a ciência avança sobre assuntos ainda não muito bem incorporados ao dia a dia da sociedade, esta pare para analisar os aspectos éticos da questão. É assim que tem que funcionar, mesmo por que não existe dentro da metodologia científica nenhum instrumento que nos permita saber o que é ou não é ético. Este dilema deve ser resolvido pelas sociedades e pelos indivíduos, incluindo aqui os indivíduos que fazem e os que não fazem ciência. Quando a sociedade é mais esclarecida graças em parte à existência de um bom e moderno sistema educacional, a ciência avança mais rapidamente. Neste sentido, ciência e democracia compartilham das mesmas necessidades.

Mas a nota de repúdio (e as declarações de alguns dos seus signatários) revela um preocupante desconhecimento sobre o atual nível de desenvolvimento das pesquisas sobre o cérebro humano.

Em países onde educação e ciência são levadas a sério, esse tipo de experimento já é realizado, observando sempre os princípios éticos e legais que regulam a experimentação em seres humanos, baseados na Declaração de Helsinque e submetidos a rigorosa legislação local. Hoje, modernos aparelhos científicos nos permitem ver o cérebro funcionando. Isto tem ajudado a descobrir como funciona o cérebro sadio, o que acontece quando pensamos, calculamos, ouvimos uma melodia. Sabendo o que é “normal” temos uma base para comparar o que ocorre em doenças como autismo, Alzheimer, Parkinson, depressão, e tantas outras, e também qual o resultado real de tratamentos e terapias, já que podemos comparar o cérebro antes e depois do tratamento. Já se sabe há muito tempo que algumas alterações cerebrais estão associadas com comportamentos anti-sociais, suicidas, etc. Ter uma ferramenta para diagnosticar estas alterações e oferecer se possível um tratamento para aliviar o sofrimento de quem padece esses problemas está longe de ser um dilema ético.

A nota de repúdio parece também errar ao antever o alcance da pesquisa. Supõem que ao eventualmente ser constatada uma relação biológica entre cérebro e delinqüência, os jovens pesquisados (provenientes da Fase, algo parecido com nossa antiga Febem) ficariam rotulados de por vida. Mas não é isto o que tem acontecido nos países onde esse tipo de estudo tem se desenvolvido. Ao contrário, a existência de componente biológico para o comportamento delitivo está colocando em xeque a própria base da Justiça Criminal e a noção jurídica de culpabilidade. Se o comportamento agressivo é influenciado pelo mau funcionamento cerebral, sobre o qual o infrator não tem domínio, até que ponto o réu é responsável? Ainda, se o jovem cresce em um ambiente de miséria e violência, esta alteração neurológica não poderia ser amplificada e agir como fator predisponente para o crime? Assim, o estudo, em vez de condenar, gera a possibilidade (polêmica) de tratar e absolver.

Enfim, uma coisa é debater com base científica. Nesse sentido, o projeto poderia ser questionado quanto a sua metodologia e alcance. Outra é acusar pesquisadores sérios de compactuar com “velhas práticas de exclusão e de extermínio”. Isto é simplesmente um disparate. É julgar e condenar mesmo antes que os caminhos de análise das questões éticas existentes nas universidades (comitês de ética) tenham sido ouvidos.

Com câmaras municipais impedindo a utilização de animais para pesquisa científica e chamando os cientistas de “rebotalhos da criação”; com projetos de lei querendo impor o ensino religioso nas escolas; com ministros solicitando a inclusão do criacionismo bíblico (disfarçado de design inteligente) nas aulas de ciência; com professores universitários assinando notas de repúdio cerceadoras da liberdade científica, não podemos deixar de pensar que a ciência está sendo de fato atacada, e às vezes, por quem mais deveria defendê-la. Nesse contexto, o que mais preocupa é a omissão mostrada por universidades e centros de pesquisa, incluindo aqui a imensa maioria de professores e pesquisadores, no sentido de defender mais ativamente a cultura da ciência. Pode ser falta de vontade. Mas preocupa pensar que seja falta de argumentos. Seja qual for o motivo, é bom acordar antes que seja tarde. As trombetas do obscurantismo ecoam no horizonte.

Roelf Cruz Rizzolo é professor de Anatomia Humana da Unesp, câmpus de Araçatuba, Este artigo foi publicado inicialmente na coluna Ciência do jornal Folha da Região, em Araçatuba, SP, 08/03/2008

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