“Você quer mesmo ser cientista?” Uma reflexão sobre a pós graduação e profissionalização da ciência

Nas últimas semanas, a proposta de regulamentação da profissão cientista1,2,3 assumiu uma ampla dimensão. De acordo ou não com a proposta de profissionalização, ela é uma realidade. Uma vez que essa questão não foi ao menos discutida seriamente sob a perspectiva das transformações no modo de produção científica, conceitos fundamentais estão sendo completamente ignorados.  Sentimos, portanto, que é importante expor essas questões e colocá-las para reflexão e debate.

Grande parte dos pós-graduandos acredita que a profissionalização é a solução para a melhoria de suas condições de trabalho e é importante, portanto, ressaltar que essa proposta propõe uma separação entre a ciência e pós-graduação. Ou seja, a profissionalização do cientista é uma questão, enquanto a melhoria de condições do pós-graduando é algo completamente diferente do que está sendo discutido na proposta de profissionalização. É importante que isso fique claro.

De acordo com a proposta de profissionalização, cientistas profissionais serão trabalhadores em ciência, com carteira assinada, enquanto os pós-graduandos serão aqueles que realmente querem se dedicar à carreira científica e acadêmica, e não somente trabalhar em ciência. Dessa forma, uma vez formados em qualquer curso de graduação, os recém graduados poderão escolher entre: (a) fazer uma pós-graduação stricto sensu ou (b) seguir a carreira de cientista (trabalhador em ciência). Alguns afirmam que, com essa separação, a pós-graduação ficará reservada para as pessoas que realmente demonstrarem autonomia intelectual e capacidade de eventualmente liderar um laboratório, enquanto quem não possui esses atributos poderá se tornar cientista.

Naturalmente, com essas afirmações, surge a questão do que é ser cientista?

Essa é uma pergunta complexa, com diversas respostas e que envolve diversos pontos de vista. Mas, principalmente, essa pergunta possui diferentes significados em diferentes momentos da ciência e, portanto, é importante contextualizar esse processo historicamente.

A ciência pós-acadêmica

Durante os séculos XVI-XVIII, os cientistas eram indivíduos com perguntas e financiamentos próprios que dedicavam suas vidas em busca de respostas. Sabemos que essa não é a realidade atual e que a ciência adquiriu um novo modo de produção. Atualmente, ela é financiada em grande parte pelo governo, que por sua vez é regido pelas grandes corporações. Quando o financiamento passa a ser restrito por determinadas agências, até mesmo a ciência mais básica não pode ser mais considerada isoladamente.

O físico e epistemólogo, John Ziman4 descreveu ainda na década de 90 o processo de transição no modo de produção científica (transformação do modo I para modo II de produção de conhecimento) e denominou essa transição de “ciência pós-acadêmica”5. Uma vez que na ciência acadêmica assume-se que os cientistas são livres para escolher suas próprias questões de investigação, com alguns limites razoavelmente estipulados, na ciência pós-acadêmica, espera-se que os cientistas trabalhem em problemas que eles não criaram pessoalmente, dentro de um grupo de pesquisa voltado para uma determinada investigação.

De maneira importante, ao se alterar o modo de produção do conhecimento, o próprio conhecimento produzido é alterado. Além disso, através da renúncia de valores ligados a uma cultura acadêmica e à adoção de valores ligados a uma cultura empresarial, o valor atribuído ao conhecimento também se altera.

Ainda que essas questões não sejam tão evidentes para nós pós-graduandos, os argumentos para melhorias de condições de pesquisa são legítimos e precisam ser atendidos.

Bastante preocupante, porém, é o fato de, indignados com as condições de trabalho e estudo, nos agarrarmos à primeira proposta de profissionalização, sem nem ao menos questionar a existência de melhores caminhos. Afinal, o papel do cientista não é questionar?

Alguns pontos importantes para a profissionalização do cientista

Antes de prosseguirmos com os argumentos da profissionalização, vale ressaltar que a profissão pesquisador já existe e você pode ser um pesquisador em diversas instituições de pesquisa (ex. Fiocruz, IDOR, Einstein, UNESP, EMBRAPA, EMBRAER, etc). Porém, essa posição não existe na maioria das Universidades, e os pesquisadores/cientistas da Universidade são oficialmente professores universitários concursados.

Mas, como ressaltamos inicialmente, por mais controversa que a proposta seja, ela é uma realidade. E, como realidade, diversos pontos importantes acerca dessa nova profissão precisam ser levantados.

1. Direitos e deveres. Todos falam muito dos direitos que os cientistas merecem, mas quais seriam exatamente os seus deveres trabalhistas? Ao nosso ver, a utilização de horas trabalhadas através de presença (bater ponto) não é apropriada, uma vez que o trabalho científico envolve competências intelectuais que não são restritas a períodos de horas trabalhadas formalmente.

2. Questão salarial. Enquanto muitos acreditam que o salário irá melhorar com a profissionalização, uma matemática básica permite um grande ceticismo em relação ao aumento salarial. Com o desconto mensal de tributos na folha de pagamento de aproximadamente 11% para contribuição previdenciária e 15% de imposto de renda (valores divulgados para 20136) o cientista contratado poderá receber um salário líquido não muito diferente do valor estipulado para a bolsa de doutorado atualmente.

3. Quadro universitário de contratações. Uma nova profissão foi criada! Agora, onde e como esses novos cientistas irão se inserir? Uma vez que a Universidade não possui um quadro de contratações (tudo ocorre somente através de concursos), essa inserção na pesquisa dentro da Universidade provavelmente será realizada via agências de fomento. Em umas das propostas, sugere-se que a verba das agências de fomento passem a ser gerenciadas por fundações (muitas delas já existentes inclusive). Pensamos que isso pode ampliar um passo na burocracia universitária e tirar a autonomia do pesquisador em gerenciar sua própria verba de pesquisa, como já acontece em algumas universidades. Portanto, devemos encarar a questão de terceirização da administração de recursos de pesquisa com cautela.

Mas afinal, se no final de toda a legislação e burocracia, retornaremos às agências de fomento, por que não criar um caminho diretamente por elas? É ingenuidade pensar que ao encaminhar propostas de mudança de legislação o problema será resolvido rapidamente. Existem projetos que tramitam há mais de 20 anos e até agora não possuem sequer menção de ser votados (tomemos o exemplo do ato médico, no qual primeiro texto foi encaminho em 2002 e só agora há homologação da proposta).

Ainda, uma vez que a profissão cientista seja criada, de forma adequada ou não, rápida ou demorada, a pós-graduação continuará na mesma situação. E é por isso que os pós-graduandos precisam buscar uma alternativa de melhorias, que não possui relação alguma com a profissionalização discutida acima.

Por uma melhoria na pós-graduação

Entendemos que a estrutura da pós-graduação no Brasil possui diversos problemas, porém, alguns de solução mais simples, não necessitando de um projeto de lei. Por exemplo, regimentos internos associados a contratos de bolsa (especificando direitos e deveres mais detalhadamente) podem ser negociados diretamente através das agências públicas de fomento (CAPES, CNPq, FAPs). Reforçamos que a criação de uma proposta de lei é algo muito demorado e pode inclusive comprometer uma tentativa de proposta diretamente com essas entidades de fomento.

Descobrimos recentemente que um projeto de lei regulamentando o salário e direitos dos pós-graduandos à classe de pesquisadores-docentes7,8 foi enviada ao congresso em 2003. Essa proposta assume uma integração entre os pós-graduandos e os pesquisadores-docentes, ao invés de propor uma separação entre eles, como na proposta atual de profissionalização. Acreditamos que devemos nos posicionar, juntamente com a classe dos docentes-pesquisadores, para mudar a realidade de docência e pesquisa nas universidades.

Porém, muitos aspectos discutidos entre os pós-graduandos como sendo necessidades urgentes são de fácil resolução, bastando incluir um contrato de bolsa mais claro e contemplando nossos direitos e deveres. A questão da carga horária, por exemplo. Por mais que esteja escrito que é regime de dedicação exclusiva (na academia, geralmente 40h), precisamos tornar essas horas explícitas. O direito a férias, licença maternidade (ponto que acreditamos que deve ser melhor discutido e pensado em relação a estratégias mais humanistas), devem estar contemplados explicitamente no contrato de bolsa seja ela federal (CNPq, CAPES) estadual (FAPs) ou agências privadas de fomento.

Ainda, é importante não focarmos a questão da ciência e da pós-graduação somente nas ciências experimentais. As ciências humanas e artes possuem inúmeros programas de pós-graduação de qualidade altíssima e possuem uma forma diferente de tratar suas questões e de olhar para suas perguntas. E não são menos ciência do que as ciências biológicas. Entretanto, é fato que em diversos desses programas, não há trabalho de bancada e sim muita leitura, disciplinas, cursos e pesquisas de campo, entre outros métodos de pesquisa adequados à essa área do conhecimento humano. Como esses estudantes seriam contemplados nessa proposta?

Acreditamos que a pós-graduação é um momento de formação e, de fato, não deve ser encarado como um emprego, pois não é. Portanto, a luta por melhorias em nossa formação são pungentes e precisamos urgentemente fortalecer os programas de pós-graduação no que se refere à qualidade dos mesmos.

Ressaltamos novamente que não há necessidade de criação de projetos de lei para resolvermos muitos de nossos problemas. Precisamos de algo muito mais urgente e de fácil resolução, caso contrário ficaremos muito mais tempo na mesma situação. Isso não é o que todos nós queremos.

Considerações finais sobre cientistas e ciência

Por fim, é um pouco desestimulante ver tamanha mobilização dos pós-graduandos para as questões de profissionalização, enquanto questões altamente relevantes para a prática científica são pouco consideradas pelos mesmos. Por exemplo, a qualidade da ciência tem sido sabidamente prejudicada com o viés de publicação em massa, no qual somente resultados positivos e novos são publicados, em detrimento de princípios básicos do método científico, como reprodutibilidade e ética. Ainda que excelentes iniciativas estejam em andamento (ex. reproducibility project9; pré-registro de estudos científicos10,11,12) e discussões a respeito de seleção estatística dos resultados tenham sido levantadas13 pouca atenção tem sido dada a essas questões no âmbito da pós-graduação.

Se o que buscamos é uma melhoria na produção de ciência e não somente das nossas próprias condições de trabalho, uma maior atenção deveria ser dada aos mecanismos vigentes de produção científica, ao invés de priorizar uma grande luta para nos adequarmos a eles. O novo modo de produção de ciência, no qual se enquadra a discussão sobre a profissionalização do cientista, ao nosso ver, não deve priorizar um trabalho intelectualmente estreito e puramente técnico sob uma bandeira de uma grande revolução da carreira científica.

Não sabemos qual será o resultado dessa iniciativa, mas pensamos ser importante discutirmos coletivamente a fim de melhorar a questão da pós-graduação, com maturidade, bom diálogo e sem decisões precipitadas. Estamos vivendo um momento importantíssimo para a ciência e precisamos nos unir para ampliar o debate acerca do rumo que queremos para a ciência brasileira.

*Por Patricia Bado e Douglas Engelke

Patricia Bado é mestranda em neurociência cognitiva no Programa de Ciências Morfológicas (PCM) do Instituto de Ciências Biomédicas da UFRJ, em colaboração com o Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino (IDOR).

Douglas Engelke é doutorando em neurociências no Programa de Pós-Graduação em Neurologia/Neurociências  da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e é  representante discente da Sociedade Brasileira de Neurociências e Comportamento (SBNeC). 

Esse texto é uma opinião pessoal dos autores, não representando opinião de nenhuma das instituições nas quais os autores estão vinculados.

Referências

  1. http://www.posgraduando.com/blog/a-pesquisa-cientifica-como-emprego-formal-durante-a-pos-graduacao
  2. http://www.youtube.com/watch?v=SzgxxLCRo-E
  3. http://blog.sbnec.org.br/2013/08/criacao-da-profissao-de-cientista-remedio-ou-veneno/
  4. http://www.phy.bris.ac.uk/people/berry_mv/the_papers/Berry394.pdf
  5. http://libweb.surrey.ac.uk/library/skills/Science%20and%20Society/SS_1_Reading2.pdf
  6. http://www1.folha.uol.com.br/mercado/1219805-veja-quais-sao-os-descontos-feitos-no-salario-do-trabalhador.shtml
  7. http://www.camara.gov.br/sileg/integras/172921.pdf
  8. http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_imp;jsessionid=14DB65213E1722E5F215C3E6810A6AC6.node2?idProposicao=138322&ord=1&tp=reduzida
  9. http://openscienceframework.org/project/EZcUj/wiki/home
  10. http://www.theguardian.com/science/blog/2013/jun/05/trust-in-science-study-pre-registration
  11. http://www.jclinepi.com/article/S0895-4356(13)00184-4/abstract
  12. http://neurochambers.blogspot.co.uk/2012/10/changing-culture-of-scientific.html
  13. http://cienciahoje.uol.com.br/revista-ch/2013/303/confiabilidade-em-crise
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