Nascemos com a necessidade biológica de acreditar. No início das nossas vidas, o que os adultos nos dizem é lei, fundamentalmente se são adultos importantes em nosso entorno, pais, parentes próximos, líderes do grupo, etc. Devemos ouvir e aprender rapidamente que o fogo queima, que podemos nos afogar no mar, que determinadas plantas são venenosas, que predadores estão à nossa espreita. É uma questão de sobrevivência que compartilhamos com os outros primatas e boa parte dos mamíferos. Essas informações são vitais para nossa sobrevivência e não vale a pena colocá-las em dúvida para testar. A evolução selecionou esse comportamento. Dificilmente você encontrará uma criança de sete anos que seja cética.
Isso, é claro, tem seu lado ruim. Se um adulto inventar uma história, a criança a terá como verdadeira. O teor das histórias contadas pelos adultos às crianças varia enormemente. Podem ensinar o valor da tolerância, mas podem também ensinar que nosso vizinho de outra etnia, nacionalidade ou religião é nosso inimigo.
Por exemplo, aproveitando essa característica biológica do cérebro em desenvolvimento, alguns adultos querem transformar crianças em crianças católicas ou muçulmanas, ou judias. Claro que não existem crianças católicas ou evangélicas, ou de qualquer outra religião, da mesma forma que não existem crianças marxistas ou partidárias do liberalismo econômico de Adam Smith. Se isto soou absurdo, deveríamos pensar por que parece sem sentido pensar numa criança marxista e não numa criança católica. Depois de tudo acreditar na luta de classes parece bem mais coerente que acreditar na existência de um homem invisível -que mora no céu- que observa e anota tudo o que ela e todas as pessoas do mundo fazem a cada minuto de cada dia. E ainda que esse homem invisível exige ser amado e obedecido e se ela não o obedecer, amar e seguir, ele a mandará para um lugar terrível embaixo da terra, onde a criança será queimada e torturada mesmo que chore e grite para o resto da eternidade. *
Essa fase onde a criança é completamente permeável ao ensinamento dos mais velhos é lentamente transformada durante o crescimento e o desenvolvimento neurológico normal.
De fato, com o desenvolvimento acontecem duas coisas fundamentais: enriquecimento da experiência individual e o amadurecimento e formação de novas redes neuronais. A experiência individual nos mostra que o mundo é mais complexo que aquele contado pelos adultos, que o mar mata mas também é agradável, que o fogo queima mas é fundamental para a vida, que das plantas venenosas podemos extrair medicinas.
Os humanos somos provavelmente os únicos animais capazes de ultrapassar o nível de conhecimento que nos foi passado pela geração anterior. Ninguém faz isso na natureza como nós. Um camundongo chegará a ser tão inteligente e sabido quanto seus pais, não muito mais que isso. Já nós, graças ao nosso extraordinário cérebro, temos a capacidade de criar rapidamente novo conhecimento e novas estratégias a partir dos ensinamentos que nos foram transmitidos e as experiências individuais adquiridas. E a velocidade com que isso acontece é cada vez maior.
Desenvolvemos também algo fundamental: o pensamento crítico. A capacidade única dos humanos de questionar o conhecimento atual. É através do pensamento crítico que a humanidade avança, reconhece os erros do passado e transforma seu futuro. Por isso é importante que durante a infância e a adolescência – período fundamental para o desenvolvimento cerebral- o pensamento crítico seja incentivado. Isso deve ser feito tanto na escola quanto em casa. Se a criança não é incentivada a questionar, quando adulta dificilmente terá a capacidade de analisar o mundo de forma a encontrar a saída para os problemas que dia a dia tem que enfrentar.
Como nossa escola fracassa neste aspecto -nosso sistema educacional prioriza a memorização e a “decoreba” em vez do questionamento- o espírito indagador é substituído pela facilidade da resposta pronta. O cérebro não é estimulado para descobrir. Aos poucos perdemos a capacidade mental que permitiu nosso progresso como espécie. Como dizem os estudiosos do cérebro “use it or lose it” (use-o ou perca-o).
Sem estimular o pensamento crítico viramos crianças adultas, ávidas para acreditar em tudo.
Com esse pano de fundo não é de estranhar que aceitemos como verdadeiras histórias sem fundamento, como as relacionadas com o fim do mundo em 2012, ou tratamentos miraculosos baseados em cristais, florais, energias místicas e na lei da atração. E também na justificativa esfarrapada do político corrupto que foi pego com as mãos na massa, mas em quem votamos novamente. Ou no bispo que foi preso com dinheiro camuflado na bíblia mas diz ser destinado à obra de Deus.
Nos anos noventa eu era fã de uma série chamada Arquivo X. A sala do agente Fox Mulder era enfeitada com um pôster com a frase “Eu quero acreditar.” É isso. Poucos colocariam um pôster com a frase “Eu quero conhecer.”
*Minha homenagem póstuma ao grande George Carlin.
Roelf Cruz Rizzolo é professor, pesquisador e divulgador científico da UNESP.
(Uma versão anterior deste artigo foi publicada inicialmente no Jornal Folha da Região (Araçatuba, SP), e na Revista Expressão (ABC e litoral)).
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