O que o cérebro faz?

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A pergunta é central para a neurociência, de qualquer perspectiva que se olhe, seja biológica, computacional, filosófica, ética, religiosa, antropológica, entre outras. Entretanto, a neurociência parece seguir seu rumo alucinante de aventuras e descobertas ignorando esta questão, que a qualquer pausa um pouco mais ponderada, volta a nos afrontar: O que o cérebro faz?  O que faz essa massa gelatinosa dentro de nossa cabeça? Qual sua função essencial?

Se meu filho me perguntar, não terei uma boa resposta em mãos. Se fosse o coração, bom, o coração bate fazendo circular o sangue no corpo levando energia vital para cada pedacinho. Os rins? Os rins limpam esse sangue, os pulmões trazem energia, os músculos movimentam o corpo e assim por diante. Mas e o cérebro?  O cérebro controla tudo isso. É verdade, mas não é só isso, mesmo uma criança pode intuir. O cérebro pensa. Será uma boa resposta? Talvez, mas explica realmente o que o cérebro faz? Pensar vem do latim pensare, e tem diversos significados, incluindo “ter na mente”, “combinar idéias” e “formar pensamentos”. Estas definições mostram que a resposta se torna um tanto quanto circular. O cérebro pensa, ou nos permite pensar; mas pensar é justamente ter em mente, e assumimos que a mente está ou é uma propriedade do cérebro. Não satisfaz, a não ser que desejemos encerrar a conversa…

Com o domínio atual da informática sobre nossos meios de comunicação e de trabalho, inclusive o de produção científica e de análise de dados, as idéias oriundas da computação invadiram com força a neurociência. É comum encontrar hoje em dia neurocientistas que respondam que o cérebro “processa informação”, muitas vezes comparando-o a um computador. Mas nos escapa que a própria definição de informação é elusiva. Ainda assim, a Inteligência Artificial investe nessa linha, tentando reproduzir cada detalhe de cada estimulo existente, para criar uma memória in sílico que seja capaz de armazená-los todos e selecionar a cada momento o que mais se assemelha ao apresentado. Mas será que é isso que o cérebro faz? Temos um híper-computador dentro da cabeça analisando todos os detalhes de cada estímulo em mili-segundos ou alguns poucos segundos?

Certamente essas perguntas já passaram pela cabeça, ou seja, pelo cérebro, da maioria de nós, nos trazendo mais uma problemática: o cérebro pergunta a ele mesmo “o que o cérebro faz”, levando a um raciocínio também muito comum, de que então o cérebro está tentando entender ele mesmo. Mas seria isto possível? Como pode alguma coisa entender a si mesma? Ainda mais algo tão complicado quanto o cérebro humano, com mais células empacotadas do que há estrelas no céu. Surge aí um paradoxo, e muitos se rendem a esta visão de que o cérebro não pode compreender a si mesmo e por isso não temos uma boa resposta. Em outros momentos parecemos sentir um sufocamento, inundados pelos detalhes, os resultados… são tantos! Uma visita ao congresso anual da SBNeC basta para chacoalhar neurônios e glia de qualquer um. Cerca de 700 trabalhos em 4 dias, com detalhes de pernas de moléculas, fluxos de íons, tempos de reação, redes de células, olhos de moscas, canto de pássaros, sonho de gente etc etc. Parece tão difícil que não dá pra sintetizar o que faz um troço tão cheio de detalhes e ao mesmo tempo tão fascinante. E tem gente que acha que o que nos falta é justamente mais detalhes, que temos de saber ainda mais pra responder a pergunta! Talvez mais uns 50 anos…

Este estado de espírito parece dominar a neurociência há algumas décadas. É justamente sobre isto que nos conta Jeff Hawkins em seu livro On Intelligence (atualmente sem tradução para o português). Formado em engenharia elétrica em 1979, criador de, entre outras coisas fascinantes, os computadores de mão Palm e Treo, Hawkins descobriu que sua paixão não era engenharia nem computadores ao ler uma antiga edição especial da Scientific American exclusiva sobre o cérebro. E sua intuição e seu conhecimento das máquinas diziam que cérebros não são computadores, pelo menos não como estes que usamos, eu para digitar o texto, a SBNeC para postar e você para ler. Ele inclusive pensou que a melhor maneira de criar computadores realmente inteligentes era primeiro entender o cérebro… mas a neurociência dos anos 70 e 80 não pensava assim. De um lado os neurocientistas com pouco interesse na computação, de outro cientistas da computação com nenhum interesse no cérebro. O resultado de sua visão excêntrica foi sua reprovação no MIT e em Berkeley. Mas o mundo gira e ele seguiu sua carreira, criou suas máquinas portáteis e, depois de 20 anos, voltou à sua antiga paixão e criou o Redwood Neuroscience Institute e a Numenta para trazer uma perspectiva brilhante e sintética com a melhor resposta que já encontrei à pergunta fatal: O cérebro faz predições. Predições constantes sobre o mundo, baseado nos estímulos que recebe e na memória de estímulos anteriores, permitindo a emissão do comportamento adequado em cada caso. Uma máquina inigualável de memória e predição.

No livro, Hawkins faz uma argumentação eloqüente e perspicaz, evita os detalhes desnecessários à sua idéia central e foca a questão no neocórtex. Não que o resto não importe, mas para a sua perspectiva de criar máquinas realmente inteligentes, Hawkins parte do princípio que basta entender o córtex, porque é lá que está a inteligência, ou seja, o mecanismo de predição mais refinado. Isso implica que a predição não é uma capacidade exclusiva do córtex, permitindo estender as idéias apresentadas para o resto do cérebro. E o restante, segundo ele, é ainda mais difícil. “Emoções são mais difíceis, e não queremos máquinas emotivas”, brinca.

Hawkins chama a atenção para as semelhanças em todo o córtex, que são maiores do que as diferenças. Isto foi proposto por Vernon Mountcastle em 1978, que notou que se por um lado temos trabalhos como de Brodmann, Cajal e outros mostrando a grande variedade de áreas corticais, tipos celulares, densidade de conexões etc, a estrutura geral do córtex é a mesma, seja em áreas visuais, auditivas, motoras ou de associação. Por causa desta semelhança, Mountcastle propôs que qualquer que seja a operação que o córtex faz com os estímulos que recebe, deve ser a mesma para todos os casos, independente de categoria sensorial. Hawkins compara esta idéia de dar mais atenção às semelhanças do que as diferenças com a idéia de Darwin de se perguntar como as espécies podem, apesar das diferenças óbvias que todos catalogavam, serem tão parecidas…

O neocórtex atinge sua tarefa de memorizar e predizer através de pelo menos três princípios fundamentais: a formação de sequências de padrões, memórias auto-associativas e representações invariantes. Ou seja, o neocórtex forma sequências de sequências de estímulos que recebe ao longo do tempo e os armazena na memória, que podem ser os próprios neurônios operando na forma de redes associativas Hebbianas. Toda a memória, sob esta perspectiva, é uma seqüência de representações de sequências de estímulos. Fica fácil constatar isso tentando, por exemplo, recordar o alfabeto ao contrário, de Z para A. É extremamente difícil, enquanto na ordem memorizada durante a infância, de A a Z, é automático e rápido. Isto porque a memória de cada letra está automaticamente associada à anterior e também a próxima, e não como um item isolado. Esta associação de estímulos na memória ocorre todo o tempo, em todas as categorias sensoriais, formando sempre sequências relacionadas no tempo e espaço. O segundo princípio fundamental é a capacidade de formar memórias auto-associativas. Isto significa que apenas uma parte do estímulo nos permite completar o todo, pois cada parte está associada ao todo em uma seqüência. Se ouvimos apenas um trecho de uma música conhecida, automaticamente recordamos e imaginamos o restante mentalmente, pois o trecho desencadeia a representação de toda a seqüência armazenada no córtex. O terceiro princípio é de que as representações formadas na memória são invariantes. Isto quer dizer que o cérebro armazena padrões de maneira não fidedigna. Não armazenamos cada detalhe de cada estímulo, mas apenas as relações principais que nos permitem evocá-lo na memória para reconhecê-lo. Um bom exemplo é o que ocorre quando um amigo muda o corte de cabelo, ou de maneira mais dramática, quando a namorada pinta o cabelo. Se a cor não for muito distinta, podemos passar muito tempo sem notar a diferença (o que pode ser extremamente perigoso no caso). Isto ocorre pois em nosso córtex a representação daquela pessoa é invariante, no sentido de que mesmo que ela mude um pouco o visual, ainda a reconhecemos como a mesma pessoa. No caso de uma mudança muito radical, como por exemplo o cabelo pintado de verde, isto irá ser muito discrepante com nossa memória e o cérebro irá direcionar o comportamento para averiguar o que há de novo que violou as expectativas, nos fazendo prestar atenção ao estímulo e por fim tomar consciência do fato de que se trata da mesma pessoa, mas com cabelo tingido. Ou seja, mesmo que um estímulo mude sutilmente de milhares de maneiras, nossa representação cortical para ele é a mesma. É isto que nos permite identificar um objeto como sendo ele mesmo, seja parcialmente encoberto por outro em nosso campo de visão ou visto de ponta cabeça. Estas representações invariantes formadas na memória e evocadas de maneira completa por fragmentos de estímulos que chegam a cada momento permitem a predição dos estímulos que chegarão no futuro próximo, que são provavelmente aqueles que completam o padrão evocado pelo fragmento mais recente.

Esta perspectiva é radicalmente diferente de entender o cérebro como um processador de informações porque não se trata de apenas emitir o comportamento de acordo com os estímulos recebidos, como no condicionamento clássico pavloviano, mas a capacidade de predição faz com que o cérebro direcione o comportamento a priori para satisfazer sua expectativa. Por exemplo, quando analisamos os movimentos oculares de alguém ao encontrar um rosto em seu campo de visão, as sacadas direcionam o olhar repetidamente entre os olhos e a boca de maneira muito rápida e precisa. Como podemos coordenar os movimentos oculares e acertar onde estão os olhos e a boca com tanta rapidez e precisão, mesmo que a pessoa esteja em ângulos e distâncias variadas? O córtex, ao receber a imagem de um olho, acessa rapidamente a memória correspondente, que está associada à forma de um rosto em nossa mente, e portanto ocorre a predição de que onde tem um olho é provável ter outro ao lado e uma boca embaixo. Esta predição direciona a próxima sacada já esperando, por exemplo, o outro olho e a seguir a boca e nariz e por aí vai, numa seqüência cíclica de memória-predição-confirmação. Portanto direcionamos o olhar já esperando encontrar olho-olho-boca-olho, por exemplo. Se isto ocorre, rapidamente confirmamos que há uma face, sem necessidade de examinar cada detalhe do estímulo. Este modelo também nos permite entender, por exemplo, porque as vezes enxergamos rostos em nuvens, pois o cérebro se depara com este padrão inúmeras vezes ao dia, milhares na vida, e ao encontrar um padrão levemente parecido com um fragmento de rosto o completa automaticamente com o padrão total armazenado na memória associado àquele tipo de fragmento, gerando a sensação de face mesmo que esta não esteja de fato lá. Este mesmo mecanismo, com pequenas variações, explica diversos fenômenos de ilusão de ótica e percepção, inclusive como nos tornamos conscientes de certos aspectos e não de outros, potencialmente iluminando diversas áreas da neurociência que são por muitas vezes ignoradas.

*Eduardo Schenberg é aluno de doutorado em neurociências e comportamento pela USP e um dos criadores do www.plantandoconsciencia.org

para saber mais:
Jeff Hawkins@TED (20 min, legenda em português disponível no menu abaixo do vídeo)
Jeff Hawkins@MIT (50 min, somente em inglês)
Dan Dennett@TED (20 min, legenda em português disponível no menu abaixo do vídeo)

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